segunda-feira, 26 de julho de 1993

Os bons e os maus

Dentro de dois meses, mais dia menos dia, o calendário vai parar numa data: 27 de Setembro de 1966. Hergé já não é jovem, mas as suas histórias sim. Os tempos são adversos, por entre contestações várias, elementares e primárias, recheadas de ideologia e outros rótulos pouco abonatórios. Todavia, distante está o tempo das polémicas aventuras de Tintin no país dos sovietes, na América, em África. E também o ciclo da aventura — em estado puro e duro — durante a ocupação nazi da Bélgica. O díptico “As Sete Bolas de Cristal-O Templo do Sol”, “No País do Ouro Negro” e a saga lunar são aventuras que se sucedem com constância. Os personagens de Hergé continuam a correr mundo, na senda dos raptores de Tournesol e também como libertadores dos muçulmanos em peregrinação a Meca. “Tintin no Tibete” é, em seguida, o mais comovente hino à amizade que alguma vez se concebeu em banda desenhada, e “As Jóias de Castafiore” um simples divertimento, um intervalo lúdico que surpreende pelo que não tem: um tema. Os sinais de misticismo e de sedução dos fenómenos parapsicológicos já vinham de trás, primeiro de forma discreta, depois mais ostensiva. E quem diria que um mero voo para Sidney iria dar lugar a tantas peripécias, algures no mar das Celebes, deixada para trás a cidade de Jacarta? Bem, é assim mesmo a aventura. E não se espera outra coisa de uma história aos quadradinhos. Os dados estão lançados e os peões nos respectivos lugares. Familiares, Haddock, Tournesol, Xyssa e, evidentemente, Tintin e Milou. Neófitos, o milionário Carreidas, Spalding e alguns malfeitores de segundo plano. Na charneira, um velho aventureiro e conhecido de Tintin e Haddock, Rastapopoulos, em torno de quem tudo se move. Determinam as regras que nada fique entregue ao acaso: perante a ofensiva adversária, os “heróis positivos” têm que inverter o rumo dos acontecimentos. Eis que mergulhamos em voo picado no campo da aventura clássica, regida por códigos que os criadores conhecem como a palma da mão. Onde Hergé rompe com os cânones é no apelo à presença de entidades extraterrestres, graças às quais os seus personagens escapam a um fim trágico. Mais um mistério que fica por explicar, excepto para os leitores, a quem Hergé lança uma piscadela cúmplice que só termina no último quadradinho: é o regresso ao aeroporto de Jacarta, na ilha de Bali, onde toda esta história começa e acaba. A rotina e o quotidiano não têm, de facto, lugar na banda desenhada.

 © 1993 Público/Carlos Pessoa

quarta-feira, 14 de julho de 1993

O correr do tempo, 10 anos da morte

Parece que foi ontem e já lá vão dez anos. Nesse dia 3 de Março de 1983, quando o planeta ainda era apenas o lugar habitado pela humanidade dividida em dois blocos político-militares, todas as atenções se concentraram num acontecimento que não deixou ninguém indiferente: a morte de Hergé, o criador de Tintin. Um autor de banda desenhada que foi manchete em jornais de todo o mundo? Se havia alguém a quem isso podia acontecer, era Hergé, o criador de Tintin.
Infelizmente, tratava-se da sua morte, aos 76 anos de idade, na sequência de uma prolongada leucemia que lhe minou a saúde nos últimos anos de vida. A sua derradeira obra, “Tintin et l’Alph-Art”, que ficaria apenas na fase de esboço — e foi assim publicada pelo seu editor de sempre, a Casterman —, é o último testemunho de um percurso criativo feito quase sempre no país natal, a Bélgica, de onde só tardiamente saiu para ver mundo, quando o essencial da sua obra já era um êxito mundial. Que Portugal tenha sido um dos primeiros países a publicar aventuras de Tintin, na revista “Papagaio”, é um mero acidente que se deve mais à energia inesgotável e diligente de Adolfo Simões Müller do que ao facto de o nosso país ser uma “potência” no campo da banda desenhada. E não deixa de ser de uma amarga ironia verificar que Portugal é, também, um dos últimos países do mundo onde a obra de Hergé está publicada que teve direito a uma edição própria, encetada nos anos 80 pela Verbo, depois de décadas e décadas de monopólio brasileiro. Contrastes. Mais do que isso, o próprio Hergé foi sempre o centro de apaixonadas — e nem sempre muito esclarecedoras — polémicas entre os seus incondicionais admiradores e os seus radicais detractores. Católico e conservador, Georges Rémi, o verdadeiro nome do criador de Tintin, nunca quis ser mais do que um simples contador de histórias para crianças. E talvez nunca tivesse deixado de o ser, não se desse a circunstância de fazer publicar em 1929 a primeira aventura de um jovem repórter que vai dar a conhecer toda a verdade sobre o “paraíso soviético”. “Tintin au Pays des Soviets”, a única aventura em que o autor nunca mais mexeu, é um violento libelo contra as manipulações políticas e as mistificações de um sistema totalitário e antidemocrático. O desenho é ainda “tosco” e pouco firme, mas as grandes referências temáticas estão lá todas: a aventura, a aventura e ainda a aventura, para lá de todos os pressupostos de ordem ideológica. Nas histórias seguintes procuraria fazer o contraponto, levando o seu herói à América, onde combate os “gangsters”, e ao Congo, onde se comporta como o colonizador ingénuo que os compatriotas belgas talvez não fossem na sua relação com a então colónia. Com os anos, Hergé vai amadurecer o seu estilo, dando fé de uma inteligência narrativa fora do comum. A utilização sistemática do preto e branco, a limpidez da sua narração e os excelentes argumentos são a chave do seu êxito. Popular, na medida em que recorre a um registo acessível para se exprimir. Intelectual, no sentido em que, depois dele, nenhum autor ficará indiferente ao seu contributo para o crescimento da banda desenhada. Para sobreviver, trabalha durante a guerra num jornal de Bruxelas, “Le Soir”, onde publica algumas das mais admiráveis aventuras de Tintin — “A Estrela Misteriosa”, “O Segredo do Licorne”, “O Tesouro de Rackham, o Terrível” —, mas que estarão também no centro da primeira grande polémica que envolve o seu nome. É acusado de colaboracionismo — o jornal era, como todos, aliás, controlado pelos alemães — e chega a ser preso. É liberto pouco depois sem nunca ser acusado de nada. Nas décadas seguintes, já com uma equipa de colaboradores em que se destacam Edgar-Pierre Jacobs, Jacques Martin e Bob de Moor, cria os Studios Hergé, onde se procede à reformulação sistemática dos seus álbuns, agora a cores, considerada uma nova e bem sucedida inovação na arte de fazer banda desenhada. Os “anos de brasa” da contestação esquerdista que culminará no movimento de Maio de 68 em França, e um pouco por toda a Europa, voltam a colocar Hergé no banco dos réus. O libelo acusatório é pesado: reaccionário, anticomunista, racista e anti-semita, entre outros epítetos. Só a sua morte virá aliviar um pouco a pressão. Redescoberto por muitos intelectuais que, na maioria, sempre olharam a obra de Hergé com desconfiança e desprezo, é objecto de um verdadeiro culto, a avaliar pela incontável variedade de estudos analíticos que lhe foram consagrados. Os anos 80 serão, a esse título, e de forma póstuma, a sua “idade de ouro”, que é acompanhada de uma sistemática reedição das suas obras e pelo desenvolvimento de uma estratégia comercial montada pela viúva para transformar os produtos saídos das bandas desenhadas em negócio de milhões. Paralelamente, assiste-se a uma recuperação das suas fórmulas estéticas, consagradas naquele que ficou conhecido como o “movimento da linha clara”, ou seja, os autores que se reivindicavam do estilo gráfico de Hergé. Ao dobrar dos anos 90, novas campanhas anti-Hergé surgem em França, focalizadas sobre aspectos muito pessoais do seu passado que chegam, inclusive, à barra do tribunal (ver “Tintin no tribunal”, PÚBLICO de 13-12-91). A incursão de Tintin no desenho animado, que foi utilizado para popularizar a imagem da personagem e dá-la a conhecer a novas gerações em França, nos Estados Unidos e em outros países, é um dos pomos da discórdia — mas não o único — entre a Fundação Hergé, a viúva do artista e a associação Les Amis de Hergé (Os Amigos de Hergé), sobre a qual ninguém quis pronunciar-se abertamente. O nosso pedido de uma entrevista com Fanny Rémi foi liminarmente rejeitado pela fundação, que invocou, de forma pouco convincente, uma ausência prolongada da viúva fora da Bélgica. Não sendo possível conhecer a versão da pessoa mais directamente envolvida neste muito criticado pendor comercial das actividades relativas a Hergé e Tintin, é o secretário-geral da fundação, Philippe Goddin (ver texto “Perpetuar um nome”), quem, de forma lacónica, explica os motivos do corte de relações com Les Amis de Hergé. “Temos o maior respeito por essa associação, como por todos os que gostam muito de Hergé, mas houve um excesso verbal da parte do presidente de Les Amis de Hergé e, ao termos sido publicamente criticados, não podíamos tomar outra atitude que não fosse a de suspender o nosso apoio à revista que eles editam.” O presidente da associação, por seu lado, limitou-se a fazer uma brevíssima alusão a esse contencioso no decorrer da entrevista que deu ao PÚBLICO, sem citar ninguém em particular. Qualquer que seja a opinião dos leitores, um facto é inegável: Hergé é, como sustenta o analista e crítico Yves Frémion, “o verdadeiro inventor da BD moderna”. Excessivamente modesto e de uma simplicidade tocante, Hergé tornou-se um mito moderno e um dos maiores expoentes da cultura ocidental. Uma situação privilegiada em que poucos autores poderão algum dia ver-se colocados pelos vindouros.

Fundação Hergé - Perpetuar um nome 
Com a morte de Hergé, Tintin terminou também a sua vida aventureira. Os Studios Hergé, que tinham sido o espaço de criação e desenvolvimento das histórias do mais conhecido personagem de Hergé, fecharam as portas: o autor manifestara o desejo expresso de não ver o seu herói viver novas aventuras. Que fazer? Criada e presidida pela viúva de Hergé, Fanny Rémi, surgiu em 1987 a Fundação Hergé, uma instituição sem fins lucrativos, com sede em Bruxelas. Não exerce qualquer actividade, tendo como objectivos exclusivos a “protecção da obra de Hergé e torná-la mais conhecida, velando simultaneamente para que o espírito da obra não seja alterado”. A proliferação de iniciativas de natureza comercial envolvendo a imagem de Hergé e das suas obras tem levado muita gente a interrogar-se sobre o papel da Fundação em todo esse processo. Em declarações ao PÚBLICO, Philippe Goddin, secretário-geral daquela instituição, foi formal: “Não exercemos qualquer actividade comercial. Absolutamente nenhuma. Muita gente tem assistido ao aparecimento de diversas iniciativas envolvendo Tintin e pensa que a responsabilidade é nossa. Nada temos a ver com isso.” Do mesmo modo, qualquer autorização para a comercialização de um novo produto está fora da competência da Fundação, como refere o mesmo responsável: “A única autorização necessária é a de Fanny Rémi, viúva e herdeira universal do desenhador, de quem recebeu a totalidade dos direitos. Para os exercer, tomou duas iniciativas no final de 1986: criou a Fundação Hergé e uma sociedade comercial intitulada Moulinsart, para explorar os direitos derivados da obra de Hergé, da qual depende uma outra, com sede em Paris, ambas inteiramente controladas por Fanny Rémi.” A Fundação está, assim, limitada a um papel de controlo das iniciativas que envolvam o nome de Hergé, velando para que a imagem deste último não sofra um desgaste que poderia ser negativo para o futuro. Este papel é particularmente importante, se tivermos em conta o “boom” de estudos, ensaios, produtos comerciais e séries de desenhos animados que inundaram o mercado europeu após a morte do criador de Tintin, ao ponto de haver quem admita estar-se muito perto do ponto de saturação, a partir do qual a imagem do artista começa a sofrer um processo de erosão acentuada. “O ‘merchandising’ relacionado com a obra de Hergé em banda desenhada era relativamente modesto no momento da morte do artista. Depois dessa data, o sucesso de Tintin não deixou de aumentar e ampliar-se. Esse sucesso comercial tem a sua origem na obra de Hergé, mas ultrapassa-a largamente. Assim, parece-nos normal que os produtos comerciais coexistam com os álbuns, embora seja necessário salvaguardar as proporções desse fenómeno. Nisso, está toda a gente de acordo”, sublinha Goddin. Mas o problema que se coloca (ver depoimentos dos críticos de banda desenhada) é o de saber se essa fasquia não foi já ultrapassada. A resposta daquele responsável é negativa: “Quando comparada com outros exemplos, não me parece que a posição de Tintin esteja em perigo, mesmo se há um inegável aumento de produtos nos últimos quatro ou cinco anos.” Permanece, para além de todas essas questões, o trabalho que a Fundação se propõe realizar. Inteiramente financiada pela viúva de Hergé, aquela instituição organizou uma exposição itinerante, “Le Monde de Tintin” (O Mundo de Tintin), que esteve em Janeiro passado exposta em Angoulême, e prepara, para assinalar o 10º aniversário da morte do artista, uma grande exposição temática intitulada “Au Tibet avec Tintin” (literalmente, No Tibete com Tintin), que deverá estar pronta no segundo semestre deste ano.

Hergé: morte e vida de um mito 
Há dez anos, que se completaram no passado dia 3 de Março, Hergé falecia em Bruxelas. A sua morte física não o arrastou para o esquecimento. As aventuras dos heróis que criou, com especial relevo para Tintin, continuam vivas e bem vivas. Uma geração de desenhadores pegou na sua herança estética e perpetuou o mito. Alguém lhe deu o nome de “linha clara”, numa mais que justa homenagem ao desenho límpido, nítido e claro que identificou um estilo inconfundível. O que já ninguém poderá jamais fazer é preencher o vazio deixado por um autor polémico e contestado, consensual e idolatrado, que nunca enjeitou a menor parcela do seu passado e soube ser coerente na defesa de valores perenes e imutáveis. Aventura em estado puro, compromisso social e político, defesa dos fracos e oprimidos, elogio da amizade e do amor, eis o que atravessa a obra do mais importante autor europeu de banda desenhada e faz a sua universalidade. Um autor para a eternidade.

“Obra magistral que merecia um fim” 
Stéphane Steeman, presidente dos Amigos de Hergé 

Sem ocultar a profunda amizade que o ligou a Hergé, o presidente da associação Les Amis de Hergé, Stéphane Steeman, soube manter um núcleo de admiradores incondicionais unidos em torno da sua própria veneração ao autor de Tintin. E defende-o contra tudo e todos, com uma convicção que o PÚBLICO registou. O que faz mover um milhar de fãs de Hergé e da sua obra? Há assim um carisma tão poderoso na postura de Tintin ao ponto de fazer dele uma referência para gerações sucessivas de leitores? Como compreender e qualificar as reiteradas acusações de racismo, colonialismo, anti-semitismo e reaccionarismo que, década sim, década não, impendem sobre o mais universal de todos os autores de banda desenhada. Aproximação a todas estas questões na entrevista que o presidente da associação Les Amis de Hergé deu ao PÚBLICO.

PÚBLICO — Quando faleceu, Hergé já era um autor consagrado ou, se quiser, já tinha muitos amigos. Quem são, de facto, os amigos de Hergé?
STÉPHANE STEEMAN — Sou um coleccionador há mais de 20 anos, conheço Hergé há mais de 40 anos e gosto de Tintin desde há 55 anos, que é quase a minha idade. Aprendi progressivamente a gostar do homem, a conhecer pouco a pouco a sua obra e a tornar-me um especialista desse mundo tão vasto que é o de Hergé. Quando ele morreu, fiquei tão deprimido que pensei em acabar com tudo. Não suportava ver-me rodeado de quanto evocava alguém que não poderia voltar a ver. Mas depois pensei que Hergé ficaria contente se soubesse que eu tinha tomado a decisão de continuar.
Foi nesse momento que nasceu a associação?
Exacto. Recebi uma carta de um polícia que me exprimia a sua convicção de que era necessário fazer alguma coisa para unir os verdadeiros amigos de Hergé, de modo a que pudessem conhecer-se, encontrar-se e dar a conhecer a obra do artista. Começámos por colocar pequenos anúncios a divulgar os nossos objectivos, a organizar uma rede de correspondência, a tratar de todos esses pequenos pormenores burocráticos que fazem as coisas andar. No início éramos umas duas dezenas e hoje somos mais de um milhar, entre canadianos, franceses, espanhóis, irlandeses, portugueses, alemães, belgas, enfim, gente em muitos países do mundo. Editamos uma revista semestral, promovemos uma assembleia geral anual e recebemos uma média de dez cartas por dia de associados de todo o mundo.
Hergé deixou um vazio entre os seus adeptos que é impossível de preencher. Mas a banda desenhada também ficou mais pobre... 
Bem, tenho que lhe confessar que não sou um fanático da banda desenhada, o que nem sempre é compreendido por quem me conhece. Sou um amigo de Hergé e é tudo. Claro que admiro alguns desenhadores, mas acima de tudo há a figura de Hergé, um clássico, o Molière do desenho, o Van Gogh da banda desenhada... E devo acrescentar que o melhor presente que ele me deu foi não permitir que as histórias de Tintin fossem continuadas por outro autor. A sua obra é de tal modo magistral, nobre e bela que merecia ter um fim. Existem 23 álbuns em que ninguém pode tocar. Assim, para mim não há, de facto, um vazio e não me sinto triste por Tintin ter deixado de existir com a morte do seu criador.
Isso significa que há uma perenidade da obra de Hergé que está para lá do fim físico do artista? Se for esse o caso, onde está o segredo dessa resistência ao tempo e às modas?
É muito difícil explicar um sucesso. Hergé nunca pensou que aquilo que fazia iria tornar-se um êxito. E se ele pudesse ver o que se faz hoje em torno da sua obra, estou convencido que não teria a menor vontade de regressar. Ele nunca deixou de se manifestar surpreendido com cada êxito obtido. Nessas ocasiões, limitava-se a afirmar que desenhava personagens e histórias para as crianças e nunca imaginou que a sua obra pudesse ser recuperada pelos adultos e pelos intelectuais. Agora é fácil dizê-lo, mas a verdade é que ele conseguiu sempre elaborar um desenho belo e despojado que era, simultaneamente, humorístico e realista, o que fazia com que as suas histórias agradassem tanto às crianças como aos adultos. E depois há um carácter universal em Hergé, que vem do facto de todos os seus álbuns serem o retrato de uma época. São obras que se lêem sempre, e de cada vez que isso acontece podem ser apreciadas de um modo diferente. E isto é válido em todas as épocas e para todos os tipos de leitores. É extraordinário!
Apesar de todas essas qualidades, Hergé foi, como sabe, muito contestado e acusado de reaccionarismo. Após a sua morte, assistimos a uma reabilitação do artista. E agora, no virar da década de 80, vemos de novo Hergé no “banco dos réus”, com acusações de ordem política e pessoal bastante contundentes. Como interpreta estes fenómenos? 
Bem, é necessário afirmar claramente que Hergé não foi sempre um homem de direita e que isso não é um crime! Mas agora, com a maneira cada vez mais destorcida com que se vê a política, um personagem de direita é logo acusado de ser de extrema-direita, e este último é automaticamente nazi... Simplifica-se tudo e quanto mais nos afastamos do período da guerra maior é o número de pessoas que, sem ter vivido as situações, elabora juízos categóricos sobre o que não conhece. Hergé conheceu Léon Degrelles em 1930 [fundador do Partido Rexista, a versão belga do Partido Nacional-Socialista alemão de Hitler], o que é do domínio público. Mas não se pode condenar ninguém apenas porque andou com Hitler na escola! Depois, cada um seguiu o seu próprio percurso, após um curto período de trabalho em comum no mesmo jornal [“Le Soir”, em Bruxelas], que, como todos os daquela época, era controlado pelos alemães. Mas limitou-se a fazer desenhos para as crianças e também para sobreviver. Hergé parodiou os judeus? Mas na época toda a gente o fazia, e não é por isso que se pode acusar o autor de Tintin de anti-semitismo! Nunca quis caricaturar mulheres nas suas histórias, à excepção da Castafiore: isso faz dele um misógino? Ao fazer caricaturas dos negros acusaram-no de colonialista, mas todos se esquecem de dizer que, naquela altura, o Congo era uma colónia belga!
Mas não pretende que Hergé foi, afinal, um homem de esquerda?... 
Claro que ele nunca foi um homem de esquerda! Mas as coisas ficam por aí. De resto, ele não sofreu a menor condenação. Sabe, é muito fácil atacar Hergé por coisas que toda a gente conhecia. Por que motivo se volta a evocar tudo isso nove anos depois da sua morte? Isso só tem um nome: mesquinhez, maldade e procura de escândalo fácil.

Tintin, difícil de abater 
Há dez anos, uma notícia abalava o mundo: Hergé morria, levando com ele o seu personagem maior, Tintin. Era o princípio de uma autêntica “tintinolatria”, que recuperou o mito, dissecou-o de todas as formas e feitios em obras incontáveis e gerou um negócio de milhões em torno dos personagens. Tintin é Hergé ou será o contrário? Em torno de uma questão tão simples de formular como esta, ouviram-se mil respostas ao longo da última década. E tudo porque Hergé, falecido em 3 de Março de 1983 na sequência de uma prolongada e dolorosa doença, deixava para os vindouros uma obra longa e universal, polémica até aos limites da saturação. Odiado e repudiado pelos que viam nele o símbolo do racismo e da xenofobia, idolatrado pelos que sublinhavam os valores positivos da amizade e da tolerância afirmados pelo seu herói maior, Hergé é um daqueles autores que dificilmente será derrotado pela “lei da morte” de que falava o poeta Camões. De facto, a sua vida é um movimento perpétuo entre a perseguição e a consagração, consoante as modas políticas e ideológicas, o evoluir da História e a postura pessoal do artista. Filho de uma família ultra-conservadora, educado em rígidas normas católicas, Georges Rémi, o verdadeiro nome do criador de Tintin, ensaia os primeiros passos na banda desenhada no começo da década de 20, deixando uma singular história, nunca mais retomada, “Les Aventures de Popol et Virginie au Far-West” (1934). Antes, e a partir de 1930, desenvolvera curtas histórias de dois “putos” residentes em Bruxelas, Quick e Flupke (histórias publicadas em Portugal pela Difusão Verbo, que também tem estado a editar as aventuras de Tintin) e, já em 1936, as aventuras de Jo, Zette e Jocko. Todavia, é Tintin quem ficará para a posteridade. Surge em 1929 como um jovem repórter — Hergé admitiu um dia em entrevista ao crítico e ensaísta Numa Sadoul, que “ele era um pouco o irmão mais novo de Totor [outro personagem de Hergé], um Totor que se tornara jornalista mas com uma alma de escuteiro”. O pior que lhe podia ter acontecido, naqueles anos conturbados entre as duas guerras mundiais, foi ter ido em serviço ao País dos Sovietes. Fortemente influenciado pela propaganda anti-comunista da época, o autor-herói traça um retrato muito severo da “democracia proletária”, das realizações do “socialismo” e do modo de vida “feliz” e “abundante” do povo da União Soviética. O estigma desta primeira aventura nunca mais o abandonaria. A história só voltou a aparecer, nas décadas seguintes, e quando a popularidade de Tintin era já uma realidade, em edições pirata, pois Hergé nunca mais autorizou a sua reedição. Ficaria, aliás, como a única não reescrita e redesenhada de todo o período da série a preto e branco. O jovem repórter viaja em seguida por África e vai aos Estados Unidos, prossegue o seu périplo pelo Médio Oriente (“Os Cigarros do Faraó”) e Extremo-Oriente (“O Lótus Azul”), onde trava conhecimento com o jovem Tchang, que salva de morrer afogado. Os Balcãs também não lhe são estranhos: “O Ceptro de Otokar” será a última história a ser inteiramente publicada no jornal “Le Petit Vingtième”, cuja suspensão é contemporânea da invasão alemã da Bélgica. “O Ouro Negro” é a aventura que só conhecerá o seu final já depois da libertação, em 1945. A este período de intenso trabalho sucede-se uma colaboração no jornal “Le Soir”, financiado pelos alemães, onde conhece Léon Degrelles, chefe-de-fila dos nazis belgas. A severa censura desse período comprova-se facilmente pela leitura de “A Estrela Misteriosa, “O Segredo do Licorne” ou “O Tesouro de Rackham, o Terrível”, admiráveis aventuras em “estado puro”, onde qualquer alusão à actualidade envolvente está omissa. O registo escolhido por Hergé, que lhe permitiu sobreviver e aprofundar o seu domínio das regras da narração figurativa, custar-lhe-ia caro após a libertação: preso sem acusação, seria liberto pouco depois sem sequer ser julgado. Segue-se o período áureo da sua carreira, quando funda os “Studios Hergé”, por onde passam nomes mais tarde famosos como Edgar-Pierre Jacobs (criados de Blake e Mortimer), Jacques Martin (Alix) e Bob de Moor (Cori, o Grumete), entre outros. Mas se os anos 50 e seguintes vão encontrar Hergé no auge da sua forma criativa, constituem igualmente um período de forte contestação do autor e da sua obra. A “ofensiva” ideológica que culmina no movimento revolucionário de Maio de 68 em França, e que alastra a toda a Europa desenvolvida, é o contraponto do aparecimento dos movimentos emancipalistas em África, nas colónias portuguesas e de outros países, assim como da revolução cubana e do fenómeno guevarista. Os valores e o ideário hergeniano estão nos antípodas desta “praxis” e dos seus pressupostos político-ideológicos. Não admira, por isso, que ele esteja no âmago de uma “cruzada” anti-racista e anti-imperialista que identifica Tintin com o modelo do herói a abater. Será preciso esperar pela década de 80, e sobretudo pela morte de Hergé, para assistirmos a um processo de reabilitação que é, também, uma moda: nasce a “linha clara”, movimento estético que se reivindica da “pureza” de traço do autor de Tintin, surgem imensas obras de análise e exegese da obra e do autor e, para concluir, um produtivo negócio de “merchandising” que o próprio Hergé, discreto e humilde, nunca vira com muito bons olhos. Mas isso são outras histórias, de que se falará na edição do Magazine do próximo domingo.

 © 1993 Público/Carlos Pessoa